O abraço da vitória: O peso de uma lágrima

Crédito da imagem: F1

Lewis Hamilton venceu o Grande Prêmio da Grã-Bretanha após 945 dias desde sua última vitória em Jeddah. Além disso, ele alcançou nove vitórias no mesmo circuito, quebrando um recorde na Fórmula 1. Michael Schumacher segue como o segundo piloto com o maior número de vitórias em um único circuito, com oito conquistas em Magny-Cours, enquanto Ayrton Senna brilhou com seis vitórias em Mônaco.

Ao descer do carro, Hamilton celebrou com seu pai, Anthony Hamilton, a tão aguardada vitória. Contudo, o que ele não poderia prever era que essa celebração resultaria em uma das cenas mais comoventes do dia: o heptacampeão mundial, emocionado, repousando sua gratidão no ombro paterno.

Crédito da imagem: F1

Em entrevista ao Felipe Kieling, Lewis foi lembrado de um fato curioso: ele nunca havia chorado após uma corrida. Mas no domingo, as lágrimas surgiram, e suas emoções estavam à flor da pele. Quando perguntado sobre o significado dessas lágrimas, ele refletiu profundamente: “Acho que, muitas vezes, quando você tem lágrimas assim… me pergunto sobre o peso de uma lágrima, sabe? E o que elas carregam… “

Então, o que essas lágrimas e emoções revelam? É compreensível considerar que as lágrimas de Lewis no ombro de seu pai estivessem relacionadas aos 945 dias sem vencer. A vitória de um homem que não conhecia o gosto do triunfo há 3 anos é um acontecimento digno de celebração. Mas, ao observarmos mais de perto, percebemos que há uma camada mais profunda de significados e lutas que transcendem o mero fato esportivo. Este homem, em sua jornada de quase mil dias sem vencer, carregava consigo um fardo ainda maior: o peso de uma identidade que, como Frantz Fanon magistralmente pontuou, nunca lhe permite ser simplesmente um homem, mas sempre um homem negro.

“O homem negro não é um homem, é um homem negro” (Fanon, 2008), durante 945 dias, ele permaneceu negro. E, em cada um desses dias, a cor de sua pele não apenas o definiu, mas também o marcou com as complexidades e as adversidades de viver em uma sociedade que muitas vezes se recusa a enxergá-lo além do estigma racial. 

Talvez possamos voltar a um passado não tão distante, onde esse mesmo ombro já recebeu as lamentações de um piloto que viu, diante de seus olhos, a interpretação e modificação de um regulamento prestes a conquistar seu 8º título. Para Lewis, aquelas lágrimas não eram apenas sobre a corrida do dia, mas também sobre as cicatrizes do passado, as batalhas travadas e as injustiças enfrentadas.

Crédito da imagem: F1

As lágrimas daquele homem que venceu a pobreza, a violência e outras investidas letais do racismo são um testemunho de uma jornada de coragem e resiliência. Lewis sempre lutou abertamente para ampliar o debate sobre a saúde mental nas mais diversas esferas, inclusive no esporte. Entretanto, nos últimos anos, sem a vitória que tanto almejava, Lewis teve que trabalhar sua própria mente todos os dias. Atrás dos holofotes, ele enfrentou uma solidão esmagadora, uma solidão que é paradoxalmente mais intensa mesmo em lugares onde parece não existir.

Falar do homem negro é falar dessas feridas que se fazem presentes em quase todas as relações sociais. É falar de inseguranças que os consomem internamente, por mais que pareçam seguros de si mesmos. A construção social é para que homem não chore. A expectativa sobre o homem negro é ainda mais severa, sem espaço para vulnerabilidades, a intenção é justamente que não haja nem mesmo espaço para isso. Eles devem se apresentar como indivíduos firmes, seguros do que são, invioláveis, inquebráveis, capazes de suportar o mundo sem demonstrar emoção.

O choro de Lewis Hamilton, então, demonstra a persistência de um homem negro ao encontro de sua obra-prima. De um filho que reconhece que o pai trabalhou em três empregos para dispor de dinheiro e investir na sua carreira de piloto. Um choro que foi quase como a culminância de tudo, desde a primeira vez que ele sentou em um kart e disse: “Eu quero competir”. E o pai respondeu: “Não posso pagar por isso, Lewis, mas se você vai fazer isso, precisa levar a sério”.

Crédito da imagem: Lewis Hamilton via Instagram

A vitória, portanto, é muito mais do que um rompimento de um jejum de conquistas esportivas. É um ato de resistência e uma reafirmação da humanidade que muitas vezes é negada. É a prova viva de que, mesmo quando a sociedade tenta aprisionar um homem em uma identidade limitante e desumanizadora, ele pode, e deve, transcender essas barreiras e reivindicar seu lugar de direito.

Um homem que, nos últimos anos, enfrentou não apenas a frustração de não alcançar a vitória, mas também a constante desaprovação. Estamos falando de Lewis Hamilton, um piloto que, apesar de já ter igualado o recorde de Schumacher, sabe que precisa continuar provando seu valor a cada momento. Não por satisfação pessoal, mas para uma sociedade que o inferioriza a cada instante.

Ainda em entrevista pós-corrida, Hamilton finalizou sua fala dizendo: “Eu acho que houve tantos momentos em que pensei que não era bom o suficiente para fazer o que fiz hoje. Nunca mais… E isso é uma coisa realmente difícil de aceitar. Mas hoje mostrou que eu não preciso aceitar isso.”

Essa fala é incrivelmente poderosa. Imagine ingressar na principal categoria do automobilismo desde 2008, enfrentando a pressão interna da equipe, a pressão externa do campeonato e a pressão constante de corresponder às expectativas sociais sobre suas emoções e sua imagem. Passar a agir de acordo com quem você realmente é, e não mais atingir as expectativas que a sociedade tinha sobre seu corpo e suas emoções, é um processo profundamente libertador.

Em 2024, após anos de angústia acumulada, Hamilton finalmente conseguiu romper com a irrealidade que lhe foi imposta e com suposições que ele até então havia assimilado como suas. É a partir daí que começa a verdadeira aprendizagem.

Considero esse momento emblemático. A jornada de Hamilton é uma representação vívida do que muitos enfrentam diariamente. Sua capacidade de perseverar, mesmo sob um escrutínio implacável, e de encontrar uma nova forma de ver e valorizar a si mesmo, é um testemunho de força e autenticidade. 

E para nós, que o assistimos, aquelas lágrimas revelavam a verdadeira essência de um campeão: a capacidade de sentir, de ser vulnerável, e de se conectar com a profundidade das próprias emoções. Um homem negro, talentoso e bem-sucedido, que com maestria e competência superou todas as barreiras impostas a sua raça em uma sociedade permeada pelo racismo. 

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Meu nome é Lívia Martins, tenho 18 anos e sou estudante de Ciências Sociais impulsionada pela interseção entre Fórmula 1 e Feminismo Negro. Os esportes não são apenas competições físicas, mas reflexos fiéis da sociedade em que estão inseridos. Ao mergulhar nas corridas, percebo a necessidade de ampliar vozes femininas e negras neste universo na busca por inclusão e igualdade em um esporte historicamente dominado por homens.

3 comentários em “O abraço da vitória: O peso de uma lágrima

  1. Que sensibilidade! Claro que todos nós ficamos emocionados com essa cena, mas essa análise possuiu um nível absurdo de atenção aos detalhes.

  2. Esse olhar é realmente especial, imaginar um campeão da magnitude do Hamilton e o controle que a sociedade exerce sobre as emoções e os resultados dele, é realmente uma situação para qual nunca me atentei. Muito bem escrito

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