A anulação da condenação por racismo e homofobia de Nelson Piquet em segunda instância: mostras de um país de mitos da igualdade racial e de gênero

O TJDFT, no dia 11 de outubro de 2023, anulou a condenação por danos morais do ex-piloto Nelson Piquet, por falas racistas e homofóbicas contra o piloto heptacampeão de Fórmula 1 Lewis Hamilton. Em março de 2023, Piquet havia sido obrigado a pagar a indenização de 5 milhões de reais pelas falas preconceituosas que fez, em 2021, em um canal do YouTube.

O ex-piloto chamou Lewis de “o neguinho” e argumentou que o heptacampeão teria perdido o campeonato de 2016 para Nico Rosberg, supostamente, por se ocupando com o que seria um comportamento homossexual1. O processo foi iniciado pelas entidades sociais: Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, Aliança Nacional LGBTI e o Educafro. A decisão de anular a condenação do tricampeão de Fórmula 1 foi unânime (três desembargadores) e demonstra como as instituições brasileiras, inclusive, o Judiciário, estão contaminadas pela ideologia da democracia racial e o preconceito de gênero disfarçado, para que esta situação mude, é preciso mudar não só a mentalidade das pessoas, mas o perfil dessas instituições. 

O argumento do Desembargador que revogou a condenação em segunda instância foi de que o ex-piloto teria feito um “deboche”, sem discurso de ódio ou dano coletivo. O magistrado, também, rejeitou a ideia de que o discurso do ex-piloto foi homofóbico, porque, também, teria sido outro “deboche” e as relações sexuais que Piquet citou, também poderiam ser feitas entre homem e mulher, o que não constituiria, para o Desembargador, discurso de ódio contra homossexuais. É importante chamar a atenção para a fala do advogado do Educafro, Marlon Reis, para os desembargadores responsáveis pelo caso: “Não estamos diante de um caso superficial, de um jogo de palavras. O direito brasileiro coloca essas expressões como criminosas. Não é opinião, é crime. Temos uma Constituição ou duas?”2

É comum no Brasil termos o racismo disfarçado de piadas; e no mundo todo, machismo e homofobia, também, dissimulados de brincadeiras. Na própria Fórmula 1, vez ou outra, assiste-se pilotos no ciclo vicioso de fazer piadas machistas, perceberem a repercussão ruim, pediram desculpas até que o ciclo recomece3. Grande parte das pessoas acham essas declarações discriminatórias apenas uma diversão, sem maiores efeitos práticos, mas elas ferem as minorias que são alvo de preconceito e revelam a mentalidade intolerante de quem as pronúncias e se entretêm com elas. Há um conceito para expressar o preconceito étnico disfarçado, criado por Lélia Gonzales, chama-se “racismo denegado”. O racismo que é evidente na cultura e nas práticas, mas os perpetradores não o querem assumir4. A argumentação do Desembargador do TJDFT de que as falas de Piquet não teriam passado de “deboche” e, portanto, não constituem crime de ódio são baseadas nesta mentalidade de racismo denegado e no mito da democracia real – segundo o qual, não haveria racismo no Brasil.  

Além disso, este caso das frases racistas e homofóbicas de Piquet contra Lewis foi classificado apenas como “danos morais” na Corte. Os grupos que entraram com a ação não fizeram a denúncia de injúria racial – que é equivalente ao crime inafiançável de racismo – ou de racismo mesmo. Apesar do advogado do Educafro ter afirmado que o que o ex-piloto fez é crime. Contudo, infelizmente, mesmo que as instituições que moveram o processo tivessem tentado enquadrar as falas do ex-piloto como um crime nesses termos, é raro, no Brasil, que estas ações se traduzam em punições penais exemplares, justamente, por causa do mito da democracia racial. Desde a Constituinte até 2017, apenas 244 processos de injúria racial/racismo chegaram ao fim no Rio de Janeiro.  

Para que esta situação mude, uma das medidas cabíveis e relevantes é a implementação de ações afirmativas em todo o Judiciário brasileiro – que é formado, em grande medida, por magistrados brancos. Segundo o Diagnóstico Étnico Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, 83,8% dos magistrados brasileiros consideram-se brancos, 12,8% negros e 1,7% pretos.5 É preciso, também, que a temática de racismo seja implementada nos cursos de Direito (como vem sendo implementada pouco a pouco nos últimos anos, mas é preciso mais expressividade e velocidade para isso) e nos cursos de formação do corpo jurídico brasileiro. E a questão não é significativa e exige uma demanda de ação apenas do setor público brasileiro. é preciso que a CBA (Confederação Brasileira de Automobilismo), a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) execute medidas práticas e eficazes para o combate ao racismo e qualquer tipo de discriminação no esporte a motor, como a difusão de informações, ações afirmativas e punições para os casos de racismo e ações contra todas as outras minorias.  

A própria FIA, que costuma ser uma entidade conservadora e não executar expressivas medidas de combate ao racismo e o preconceito com minorias, proibiu Nelson Piquet de frequentar autódromos onde a F1 está, por causa deste incidente de falas racistas e homofóbicas6. É necessário fazer isto, porque o esporte também possui esta função educativa e de promover valores cidadãos. Um dos grandes exemplos em que a comunidade do automobilismo se solidarizou com uma vítima de racismo é o do piloto da Nascar Bubba Wallace, que foi ameaçado de morte e o piloto recebeu apoio da organização do evento e de outros pilotos7.  

Superar o preconceito e a discriminação às minorias é um dever não só do esporte em si, mas de todos os setores da sociedade. Muitos talentos são perdidos e vidas são destruídas por causa de racismo, capacitismo, machismo etc. As entidades que moveram a ação contra Piquet vão apelar agora para o Supremo Tribunal Federal, pois acreditam que existe, nesta instância, mais possibilidade de ganharem a ação pelo caráter mais vanguardista da instituição. Isso pode ser verdade, mas é preciso que as ideias antirracistas e antidiscriminatórias, de forma geral, estejam presentes em todo o Judiciário brasileiro. Por isso a necessidade de mais minorias nos Três Poderes brasileiros seja na formação ou na implementação de políticas. E o mesmo para o automobilismo, é preciso que mulheres, deficientes e negros estejam tanto na pista como em diversas instâncias da comunidade automobilística para um esporte mais diversos e equânime. 

1 – Para saber as exatas palavras de Nelson Piquet, ver: Justiça anula condenação de Nelson Piquet por racismo contra Hamilton

2 – Justiça anula condenação de Nelson Piquet por racismo contra Hamilton

Para citar alguns exemplos, veja Sérgio Perez, Daniel Riccardo, Dani Kvyat; entre tantos outros.

4 – Para uma abordagem lúdica, bem feita e engraçada do racismo denegado, veja o texto: Racismo,
de Luiz Fernando Veríssimo

5 – Racismo, de Luiz Fernando Veríssimo
6 – Fórmula 1 proíbe Nelson Piquet de acessar paddock após racismo com Hamilton
7 – Nascar mostra apoio ao piloto Bubba Wallace após ataque racista no Alabama

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Ester dos Santos é mestranda em Ciência Política, na UnB, acompanha Fórmula 1 desde 2009 e ama falar de automobilismo, política e assuntos afins.

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