Apesar de ter entrado recentemente no calendário da Fórmula 1, o circuito de Jeddah Corniche já é um dos mais polêmicos e controversos. O motivo disso são as críticas que vão muito além da falta de espaço da pista e da desorganização da direção de prova local, já que envolvem diversos aspectos da política interna e externa da Arábia Saudita.
Localizado na Península Arábica, o Reino da Arábia Saudita é uma monarquia absoluta teocrática, em outras palavras, é governada por um rei com poder absoluto que segue as normas de uma religião específica, no caso da monarquia saudita, o Islam. Desde 2015 o monarca do país é o rei Salman bin Abdulaziz Al Saud e seu filho Mohammad bin Salman é o príncipe herdeiro.
No âmbito religioso, a Arábia Saudita é de extrema importância para o Islam e seus fiéis, pois além de ser o berço da religião também tem dois dos lugares mais sagrados para os muçulmanos, as cidades de Meca e Medina. Vale destacar ainda que a Arábia Saudita segue a vertente sunita do Islam, que resumidamente explicando, são aqueles que acreditam que após a morte do Profeta Maomé, o novo representante da religião deva ser escolhido pelos fiéis.
Toda essa contextualização é necessária para compreender as notícias que desde 2021 vêm marcando o mundo do automobilismo, como os ataques que aconteceram nesta semana próximos ao circuito de Jeddah e os ataques que ocorreram nas proximidades de onde estava sendo realizado normalmente o E-Prix da Fórmula E de 2021 na capital Riyadh.
Esses ataques possuem ligações diretas com as ações realizadas pelo governo saudita, já que desde 2015 a Arábia Saudita lidera uma “operação militar” no Iêmen. A motivação da invasão saudita está ligada à Guerra Civil Iemenita (2014 – atualmente), causada por uma série de revoltas e protestos que aconteceram no mundo árabe, no “evento” conhecido como Primavera Árabe (que motivou, por exemplo, o cancelamento do Grand Prix do Bahrein de 2011).
As revoltas que ocorreram como consequência da Primavera Árabe levaram o Iêmen a uma forte instabilidade política, que gerou inúmeras reconfigurações na política interna daquele país. Durante este período, o grupo político de maioria xiita conhecido como Houthis ganhou ainda mais força, até que em 2015 o braço armado do grupo realizou uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente do país.
A tentativa de remoção do presidente e sua fuga para a Arábia Saudita acirrou ainda mais a guerra e fez com que, em 26 de março de 2015, o governo da Arábia Saudita coordenasse inúmeros ataques aéreos, oficializando assim a Intervenção Militar Saudita no Iêmen. Desde então, a invasão é apoiada internacionalmente por países como os Estados Unidos, França e Reino Unido.
No entanto, essa invasão é cercada de inúmeras controversas, já que diversos relatórios da Human Rights Watch e da Anistia Internacional apontam dezenas de crimes de guerra cometidos pelo governo saudita durante a invasão. Hoje o Iêmen vive a pior crise humanitária do mundo e nesses sete anos de conflito, mais de 370 mil pessoas morreram e inúmeros ataques Houthis foram realizados contra os sauditas.
Tanto o conflito, quanto a presença da Fórmula 1 no país, estão diretamente ligados aos interesses Arábia Saudita, que servem não só como demonstração da força dos sauditas, como também uma forma de aproximar mais o país do “mundo Ocidental”.
Além disso, mesmo com todas as acusações contra a família real, o peso de ter a Saudi Aramco, a maior empresa petroleira do mundo, como uma das principais patrocinadoras da F1, faz com que a presença de Jeddah no calendário tenha um grande peso. Outro ponto são as diferenças históricas e políticas com o Irã, que além de ser uma das motivações para o apoio dos Estados Unidos ao governo saudita, também reforça a participação do país no calendário da F1.
Sendo assim, o não cancelamento do GP deste domingo, mesmo com o risco de ataque e as declarações polêmicas de diversas pessoas importantes dentro do paddock, mostram que o movimento “No War” só funciona para países europeus; já que na ocorrência de uma invasão militar, crimes de guerra e regimes autoritários realizados fora da Europa está tudo bem, “let them race”.
Referências:
CIA Factbook. Saudi Arabia. 2022. Disponível em: <https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/saudi-arabia/>.
COSTA, Beatriz Pidone. Arábia Saudita e Irã: Rivalidade e disputa pela hegemonia no Golfo Pérsico. Revista Îandé. São Bernardo do Campo, v.2, n.1, p.72-84, jul/2018.
DARWICH, May. The Saudi intervention in Yemen: Struggling for status. Insight Turkey, v.20, n.2, p. 125-142, 2018.
OLIVEIRA, Anna Clara. Dois Níveis. Iêmen: A história de um país dividido. 2022. Disponível em: <https://www.doisniveis.com/oriente-medio/iemen-a-historia-de-um-pais-dividido/>.
Jorge Willian Ferreira Gonçalves é graduando em Relações Internacionais pela UFG, além de gostar de estudar e pesquisar sobre Leste-Europeu e Ásia Central, também é entusiasta da aviação e da Fórmula 1.
Matéria impecável, simplesmente