Entrevista exclusiva com Matheus Servello, o marshall que entregou a bandeira para Hamilton

Foto: Rudy Carezzevoli

Hoje falamos com Matheus Servello, 40 anos, analista de sistemas que trabalha como marshall da equipe de resgate da F1 no GP do Brasil desde 2018. Foi ele que, numa decisão histórica e muito emocionante, entregou a bandeira para Lewis Hamilton, recriando a famosa cena de Ayrton Senna em Interlagos, três décadas atrás.

Antes de mais nada, vamos entender melhor como é o trabalho de um marshall num fim de semana de GP, a rotina, regras e objetivos que esses profissionais tem a cumprir.

BLOG: Matheus, primeiramente, muito obrigado por aceitar o convite, é uma honra. Me conte, como é o trabalho de um marshall num fim de semana de GP do Brasil?

MATHEUS SERVELLO: Eu que agradeço por ter me chamado, pelo reconhecimento.

Bem, vamos lá. É muito legal trabalhar de marshall, por mais que seja cansativo. São 3 dias que a gente acorda 4 da manhã, chega no autódromo às 5 e vai embora 7 da noite. Chega em casa umas 8:30 da noite, por causa do trânsito, e aí a gente prepara um lanche e organiza as coisas, porque às 4 horas do dia seguinte tem que acordar para estar às 5 de novo lá.

Trabalho no posto 11, na curva do Pinheirinho. Nós atendemos desde o final do Laranjinha até o Bico de Pato. Todo aquele pedaço, pelo lado de dentro, é nossa responsabilidade. No meu posto são 4 marshalls, três e um líder. Tem também o motorista da picape, o operador do trator e os nossos dois bombeiros, totalizando oito pessoas no posto.

Temos poucos momentos de descanso e de lazer, porque mesmo quando não tem atividade na pista nós estamos sempre trabalhando, seja varrendo a pista, organizando o posto, recolhendo pedaço de carro que quebrou, fazendo inspeção… temos um monte de coisas para fazer ali.

Como falei, é cansativo, mas é prazeroso. É um trabalho voluntariado, não ganhamos nada com isso.

Bom, para não dizer que não ganhamos nada, nós ganhamos 3 camisetas do GP, um boné e um lugar privilegiado na pista para ficarmos!

BLOG: Como é o treinamento de um marshall?

MATHEUS SERVELLO: Nós treinamos durante 2 anos inteiros, desde janeiro de 2020. Na verdade. nós nos preparamos para o GP do ano passado, mas como não houve, continuamos a preparação para o deste ano. Foram 24 meses de preparação árdua, principalmente na questão da organização.

Foram 3 dias de treinamento prático em Interlagos, levantando carro no trator, baixando o carro, passando fita, passando fita uma vez, passando outra, passando mais outra, até aprender e diminuir o tempo pra fazer tudo rápido.

É bastante coisa: Ficamos lá empurrando o carro na brita, rebocando o carro, pulando barreira de pneu, correndo na pista, varrendo a pista, recolhendo detrito e fazendo uma dezena (ou mais) de reuniões virtuais para acertar todos os detalhes. No nosso trabalho nós temos que ser o mais discreto possível. Quanto mais discretos, melhor para o evento.

BLOG: Qual a relação de um marshall com os pilotos num fim de semana de GP?

MATHEUS SERVELLO: Então, um desses poucos momentos de lazer que mencionei anteriormente é no desfile dos pilotos. É o momento em que nós podemos ir até a beirada da pista para tietar os pilotos, vê-los passar e torcer, tudo aí isso é liberado.

Inclusive quando o caminhão passou pela gente, nós levamos a bandeira do Brasil, e tínhamos uma bandeira da Finlândia também, que o pessoal da sinalização queria mostrar para o para o Raikkonen e para o Bottas. O Hamilton acenou para a gente, de forma até que protocolar para nós, bem simples, e seguiu.

BLOG: Como um marshall vivencia uma corrida, ali, in loco?

MATHEUS SERVELLO: A gente tem uma visão diferente da corrida. Pelo menos ali no posto onde trabalho (posto 11), não temos telão, então só se consegue ver o Laranjinha, Pinheirinho, Bico de Pato e lá de longe a primeira perna da curva da Descida do Lago. De resto, não sabemos exatamente o que está acontecendo na maior parte do circuito.

A gente acaba se orientando pelo barulho de torcida. Se ouvimos um barulho de torcida, é porque alguma coisa aconteceu!

BLOG: Como começou essa história da bandeira que acabou nas mãos do Lewis?

MATHEUS SERVELLO: A história da bandeira começou como uma brincadeira. No posto que trabalhamos, aquele que contei antes, tem o Fábio, Fábio Rezende. Ele é torcedor do Max e era o dono da bandeira. Digo “era” porque a bandeira se foi! Ele estava com um xodó com aquela bandeira, fez questão de comprar uma oficial mesmo, procurou na internet e descobriu a forma correta de se dobrar a bandeira e tudo mais. Ela estava impecável, não tinha um pontinho de sujeira, não tinha uma dobra, não tinha nada, a bandeira estava impecável mesmo.

E todo ano nós fazemos uma foto oficial com a equipe de marshalls, que são aproximadamente 100 pessoas. É muita gente. Mas, por conta do covid, devido aos protocolos sanitários, não pudemos fazer essa foto com todo mundo. De qualquer forma, o Fábio levou a bandeira pra fazermos a foto da nossa equipe, os 8 que mencionei antes.

BLOG: Como foi a decisão (histórica) de dar a bandeira pro Lewis?

MATHEUS SERVELLO: Bom, deixa eu explicar: Eu e o Leonardo Augusto, o Léo Mil, que é o meu líder de posto, estávamos torcendo muito pro Hamilton, desde sexta-feira. E a gente estava brincando com o Fábio também, que como falei, era o dono da bandeira e torcedor do Max.

Num determinado momento da corrida, quando o Hamilton ainda estava em segundo, o Léo chegou para mim e disse assim “Ó, vamos lá falar para o Fábio que se o Hamilton ganhar a corrida a gente vai dar bandeira para ele (Hamilton). Ele (Fábio) vai ficar doido, porque ele estava louco com aquela bandeira.”

Falei assim pra ele: “Olha Fábio, o Léo falou que se o Hamilton ganhar nós vamos dar sua bandeira para ele! É ordem do líder e a gente vai dar e pronto”

E o Fábio respondeu: “Nesse caso eu vou desacatar o meu líder, porque ela é minha e eu só dou minha bandeira para o Verstappen!”.

Aí tudo bem, a brincadeira passou, cada um voltou para o seu lugar de posto e continuamos assim durante a corrida. Aconteceu o que aconteceu, os dois pra fora da pista, depois Lewis passou Max, aquele barulho todo da torcida!

Faltando 2 voltas, nós começamos a organizar como seria a desmontagem do posto, porque depois que o último carro passa nós temos que desmontar tudo que está ali o mais rápido possível.

Aí quando o Hamilton abriu a última volta o Léo falou: “E a bandeira?”, no que eu disse, “vamos fazer mesmo?”

“Vamos, vamos colocar a bandeira ali, pra mostrar pra ele!”

“E se o Hamilton pedir a bandeira?”

“Se ele pedir, dá!!!”

Aí eu falei: “Léo, eu não consigo entregar, se eu tiver que levar a bandeira pro carro dele vou desmaiar em cima do carro, não vou conseguir me segurar!

Mas na verdade nem achamos que ele fosse pedir, sabe? Duvidávamos que ele fosse querer a bandeira.

BLOG: E a hora H, como foi?

MATHEUS SERVELLO: Bom, fomos falar com o Fábio e ele não quis pegar a bandeira, não queria pegar de jeito nenhum. Tive que prometer que daria outra bandeira novinha pra convencê-lo. Ficamos ali na “agulha”, que é saída para o Bico de Pato, é dentro do Pinheirinho mas na saída para o Bico de Pato.

Fiquei no lado direito, próximo ao guard-rail. Um pouco atrás de mim estava um outro colega, o meu líder de posto à esquerda e o Fábio no outro canto, próximo à barreira de pneus, com a bandeira na mão. Ele estava com a bandeira encolhida na mão porque ele não queria que o Hamilton visse a bandeira! Não queria se desfazer dela.

E aí vem o detalhe: Nós, marshalls, não temos autorização para ir para a pista sem que o race control nos autorize. Por causa disso, nós ficamos ali quase que de enfeite. Sempre cumprimentamos os pilotos, que passam devagarinho e bem perto, independentemente de quem ganhe.

Eu estava olhando e de repente o Hamilton aparece pelo lado esquerdo, a aproximadamente meio metro, mais ou menos, da linha branca. Na hora que ele imbicou, pensei: “A bandeira, ele vai querer a bandeira!”

Eu não estava vendo Fábio, mas ele viu que o Lewis apontava para a bandeira.

O Hamilton parou exatamente na minha frente, e aí que eu me toquei! Virei para o Fábio e gritei: “A bandeira, Fábio, a bandeira!” E o Fábio parado, e o Hamilton gesticulando!

Aí, deixando claro que tudo isso foi muito rápido, vi que o Lewis mexeu no cinto de segurança, dando a impressão que ia sair do carro! Aí caiu a ficha. E, como o Fábio continuava parado, travado, eu corri e peguei a bandeira dele. O meu líder de posto, o Léo, gritou: “Vai!” Porque eu não poderia ter ido, eu não tinha autorização para ir até ele. Mas quando ele gritou (sendo que eu não sabia se era autorizado pelo race control ou simplesmente ele tomou a decisão sozinho) eu fui!

Entreguei a bandeira para ele, ele esticou a mão por cima do halo, e a pegou com a mão direita.

Eu estava muito emocionado, muito emocionado mesmo! E por um acaso do destino, como a bandeira estava esticada (eu peguei ela quase que nas pontas e entreguei assim mesmo, daquele jeito, pro Lewis), ele pegou no meio dela, e foi o fato dele pegar a bandeira no meio que fez aquela cena toda das 4 cores da bandeira aparecendo enquanto ele desfilava.

Depois, olhei para ver se não vinha ninguém, já que se viesse algum piloto rápido, iria cortar pela grama, onde exatamente eu estava. Por conta disso, eu tentei não pisar na pista, aliás, eu achei que eu não tivesse pisado na pista, mas nas fotos depois eu vi que acabei pisando. E é perigoso, porque estou entre as rodas, então eu entreguei, olhei para o lado direito, vi que não vinha ninguém, dei dois passos de costas e saí correndo.

Quando me virei, todos os meus colegas, marshalls, bombeiros, operador de trator, todos os que estavam ali estavam pulando de alegria e se abraçando. E eu também, claro!

BLOG: E foi planejado, combinado previamente?

MATHEUS SERVELLO: Em todo esse tempo, ninguém previu a situação dele pedir a bandeira. Nós realmente não esperávamos isso.

Tanto que o pessoal perguntava: “Foi combinado?”. E não, nada disso, até porque se fosse combinado nós não o teríamos feito, porque como te contei, nós não podemos ir até o piloto, a menos que haja uma orientação expressa do Race Control. Sem ela, nós realmente não podemos.

Foi algo impulsivo, eu estava ali, o Fábio congelado, que não entregava a bandeira, e foi aquilo que contei, o Lewis pediu, eu peguei da mão do Fábio, corri e a levei. Foi um momento de impulsividade minha, a emoção falou mais alto, não só por eu ser um torcedor do Hamilton, mas também pelo fato dele estar ali pedindo a bandeira na minha frente, interagindo comigo!

BLOG: Qual foi a sensação de ver a bandeira de vocês nas mãos de Lewis Hamilton?

MATHEUS SERVELLO: Então, a nossa alegria não era o Hamilton andar com a bandeira do Brasil, a nossa alegria era por ele ter pegado a nossa bandeira! A bandeira que nós passamos ali o fim de semana inteiro, que nós tiramos fotos, que nós nos enrolamos nela… E ainda ficamos tirando sarro do Fábio, que perdeu a bandeira!

Aí a gente começou a ouvir o barulho da torcida, porque a torcida do setor A, que é na arquibancada da subida dos boxes, ficava atrás da gente. E o barulho foi aumentando, foi ficando uma coisa é inexplicável, uma gritaria danada: “OLE, OLE, OLE, SENNA, SENNA!”

10 minutos, por aí, depois do término, vi o vídeo do Sérgio Maurício narrando, e aí começou a cair a ficha do que realmente tinha acontecido.

BLOG: E sobre a homenagem ao Ayrton?

MATHEUS SERVELLO: A gente não tinha nenhuma intenção de fazer uma homenagem ao Senna, apesar de eu ser um grande fã do Senna, desde a minha infância sou um grande fã do Ayrton, eu e o Léo temos coleções enormes de miniatura dele. Mas realmente não tínhamos nenhuma intenção de copiar o que aconteceu há 30 anos, em 91. Nossa intenção era encher o saco do Fábio, por causa que ele estava com uma frescura danada com a bandeira!

BLOG: E como foi o depois? E a bandeira?

MATHEUS SERVELLO: Então, passado tudo isso, estava uma gritaria ali na reta dos boxes, todo o pessoal na pista. Nós estávamos trabalhando, colocamos pedaços de carro que tínhamos ali conosco, um era da Haas do Schumacher, colocamos tudo na nossa picape, desmontamos tudo o que tínhamos que desmontar no posto e fomos devolver as peças dos carros no box , porque as equipes querem tudo de volta, se tem um pedaço de qualquer coisa, elas querem, mesmo que joguem fora depois.

Quando chegamos na entrada dos boxes, tinha uma multidão de gente da Mercedes. Vi o Toto jogando champanhe para cima, toda aquela festa que eles fizeram depois da corrida. E o Hamilton subiu ali onde ficam os fotógrafos, no pit lane, enrolado na bandeira.

E aí o Fábio diz; “Olha lá, minha bandeira!”

Na nossa ingenuidade, a gente achou que depois iríamos pegar a bandeira de volta, até falamos pro Fábio ficar tranquilo, que a teríamos de volta. Ele estava chateado, pelo fato de ter perdido o xódo dele, a bandeira, que estava com ele fazia dois GPs. Aí falamos pra ele que qualquer coisa daríamos outra, nova, oficial, como ele quisesse!

BLOG: Vocês tentaram pegar a bandeira de volta com a Angela Cullen?

MATHEUS SERVELLO: Aí é que vem uma parte muito interessante. Como nós não conseguimos passar com a picape (estávamos indo devolver os pedaços de carro, etc, para a Haas) porque a torcida tinha tomado conta de tudo, o nosso líder de posto, o Léo Mil, pegou os pedaços do carro e e levou até a Haas. Aí, na volta, ele passou pelo pessoal da equipe da Mercedes.

E ele começou a pedir a bandeira! Ele gritava, em inglês mesmo: “The flag is mine, the flag is mine!” (A bandeira é minha!).

Mas as pessoas estavam todas desconversando: Que não sei, que não vi, não sei com quem está, aquela coisa toda. Até que o Léo chegou na Angela Cullen, que é a assessora do Hamilton, e ele falou com ela, de novo: “The flag is mine, where is my flag?” (a bandeira é minha, onde está a minha bandeira?”, e nisso a Angela falou assim, meio num tom de ironia: “I don’t know (eu não sei)”. Aí é isso, a bandeira tinha sumido.

Depois vimos algumas fotos, no perfil da Mercedes, que a bandeira estava com várias assinaturas e tudo mais. Vimos aquela foto do Leonardo, o engenheiro brasileiro da Mercedes que subiu com eles ao pódio, que ele está enrolado nela e está cheia de assinaturas.

BLOG: Houve alguma tentativa de falar com a Mercedes pra pegar a bandeira?

MATHEUS SERVELLO: Sim! Nós mandamos mensagem para o Hamilton, para a Angela, pedindo por favor que devolvam a nossa bandeira, de preferência assinada (hahaha), na nossa ingenuidade achando que eles vão assinar a bandeira e devolver.

E estamos até agora provocando o Fábio, até falei pra ele: “Ó, os caras assinaram sua bandeira, ela desapareceu, você nunca mais vai ver a bandeira!”

E ele, “É, você vai ter que me dar outra!”,

E eu: “Me fala onde que compra uma bandeira original, que eu vou comprar a bandeira para você pro ano que vem!”

18 comentários em “Entrevista exclusiva com Matheus Servello, o marshall que entregou a bandeira para Hamilton

  1. Muito boa a entrevista, parabéns. Foi muito bom saber os detalhes desse momento tão incrível e que vai ficar marcado para sempre.

    • Vamos fazer uma vaquinha para comprar duas bandeiras novas para o Fábio, assim ele não reclama se tiver que dar a próxima

  2. Muito bom, parabéns pela matéria…. Grande Historia…

  3. Wow what a story, just a wholesome read, what a guy! Truly part of a historic moment in F1 history that will be remebered for years to come!

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  9. Pergunta pra ele como é o ditador diretor da prova, cargo que já foi de Sr Carlos Montagner, mas agora tem um bêbado que vomita até na festa de final de GP!!!. Diz que já foi marshall, mas no máximo segurou plaquinha no grid. Não entende de F1 e está lá por ego, ninguém gosta dele, mas temos que engolir todo ano. O show que deu sobre a bandeira amarela que tinha que ter sido dada no S do Senna, naquela rodada do sábado, foi ridículo, tudo apoiado pelo Julio Em Cima do Muro Cesar. Não deixa a gente esquentar uma comida no posto, e regula a quantidade de água, 2021 foi um vergonha. Está na hora de um job rotation forte. Até o “gringo” já deu no pé e está ajudando a CBA escondido. Esse ano, tem que mudar.

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